Buracos, crateras e abraços

Ana Cláudia Almeida

curadoria Tarcísio Almeida

Rio de Janeiro, 22 de maio – 2 de julho de 2021

Corpo chamando espaço

Talvez, a pergunta que esteja aqui em nosso horizonte seja: Como nós, corpos que ascendem dos tremores herdados pelo presente experimentamos modos, mesmo que sutis, de liberdade e liberação? Ainda em 2019, quando iniciamos o processo de trabalho que começa agora a tomar forma e força em seu primeiro recorte, o eco dessa pergunta funcionava tanto como motor como matéria para a elaboração de um tônus muscular e sensível necessários para habitarmos a fundura dessa questão.

Aqui onde o corpo passa a ocupar o espaço da própria cratera, muito além do som, o que dele se projeta e expande é uma massa feita de ar e cor na qual tudo é ritmo e intensidade. Ambos, impossíveis de prever, se conformam em situações aparentemente dispersas, e é por elas que tudo ondeia. O corpo que agora é a própria cratera experimenta por anunciação seus registros visuais.

Aqui onde a luz não consegue adentrar pelos ditames do iluminado as relações se dão por refração, ou seja, nada se manifesta por inteiro. O Ser não existe antes da experiência e nada se dilui por completo de modo que as partes envolvidas conseguem se manter firmes o suficiente e moles o necessário para que seus ritmos e intensidades possam realizar o trabalho em jogo.

Aqui onde as reivindicações se dão no espaço abstrato dos buracos o que se faz presente é o próprio múltiplo em sua capacidade de contaminação e propagação. E o medo operado pelo imperativo da unidade se dobra, redobra, rebaixando os efeitos da máquina que produz o cárcere secular do nome. O corpo da cratera é também vaso. Gesto e pura ressonância de uma manifestação movida pelo rearranjo da energia: materialidade condutora da experiência.

Já em 2020 quando mais uma explosão transcontinental ofuscou nossos mil sóis, nos reencotramos através dos pixels com a geografia de Milton Santos e uma velha-nova intimidade sugerida por sua filosofia indicava que para além de uma forma de fazer e dar corpo as intensidades um problema sobre espaço também reluzia. Os espaços, conjuntos de ações depuradas e edificadas pela experiência, bem como suas técnicas (meios instrumentais com os quais a vida se realiza) foram alargados pela força impressa do corpo no papel, pela coreografia diante da cor bem como pelo desejo suscitado pelas proporções. Mais do que uma teoria sobre o espaço, o que a bússola feita de pastel oleoso direcionava era um desejo de espaço. Lugar por onde o ar pudesse fluir e que nos levasse tanto a alturas siderais como as frestas meticulosas das partículas infra quânticas da sensação.

Chamar o espaço por meio daquilo que ainda não tem forma é tornar tangível nele mesmo a matéria que se faz necessária quando o real parece estremecer. Nesse sentido, abstrair é agir desde um mundo a favor do que pede passagem e por isso urge pela criação de um lugar que ainda não há precedentes. No horizonte dessas maneiras encontramos a nós mesmas, corpos não totalmente mapeados que sustentam nas passagens, na recusa de um sentido prévio e na retirada do protagonismo das palavras as possibilidades de dizer a partir da (re)composição. Chamar o espaço como quem luta pela “desfacialização” é oportunizar a formação de um bloco vivo, em que paisagens desconhecidas são alimentadas, enunciadas por suas forças e, por isso, nos fazem adentrar numa multiplicidade que não cessa seus efeitos de criação.

Como então o encontro entre distintos planos de força produz um espaço? Como tornar sensíveis (e visíveis) tais forças presentes numa prática comprometida com o seu aparecimento? O problema do transporte das forças pelo espaço encontra-se misturado a uma forma de conhecimento e afecção eminentemente ligados à capacidade ética do corpo que as convoca. O que as forças chamam quando atravessam o corpo-espaço é sempre da ordem de uma saúde operada pelo encontro. A renúncia ao espetáculo da representação em proveito da sensação, nos coloca sempre diante de uma declaração de fé ante a própria vida.

De novo: O que o problema das forças nos traz é sempre um problema de espaço. Um espaço que se abre à altura de suas forças e nos oferece a oportunidade de redesenho do vivo. É no corpo do espaço que algo se passa: ele é agora pura fonte de movimento. Evidentemente que o acontecimento, uma condição do acesso às forças e formas que rearranjam o espaço, não são questão de mero acaso ou sorte. O acesso às forças, diz respeito, antes de tudo, a uma tomada de posse, mesmo que clandestina, do próprio direito a elas. Tomar as forças em si é tomar o espaço em si. Como então garantir ao corpo o acesso a tais forças se a atualização das capturas históricas visa fundamentalmente sua anestesia?

Buracos e Crateras

É por buracos, crateras e abraços – lugares sensíveis e dedicados a todos seus pares que não gostam de falar sem- pre – que Ana Cláudia Almeida articula o recorte de trabalhos apresentados aqui em sua primeira exposição individual na Quadra Galeria. Frutos de sua pesquisa, em andamento desde 2019, Ana recorre a uma série de procedimentos aparentemente incompossíveis ao campo pictórico como: sorrir, dançar, traçar rotas sem nome, trocar olhares… para se deslocar em direção ao seu desejo de espaço. Topologias visuais, e não menos políticas, arranjadas entre a pintura expandida e o desenho que funcionam tanto como chamamentos como rastros do seu próprio movimento.

Nesse exercício de convocação são muitas as forças que a artista coloca em jogo: Forças temporais que nos confrontam através da plasticidade e da perenidade dos materiais; Forças gestuais como as impressas no ato de desenhar fazendo da ação não só o rastro do corpo mas um mapa das forças que criam suas situações; Forças de ventilação que arejam a vida para fora dos ditames da contenção; Forças de deformações rítmicas que saturam as cores para que delas verta-se uma outra política para o próprio corpo.

Mas há ainda muitas outras forças. Forças de desmantelamento, de desmanche, de desaprendizagem. Forças intempestivas que colocam o tempo para fora dele mesmo. Forças abstratas que transformam a imagem ainda não reconhecível em um operador político que nos permite rasgar certos horizontes sociais sem o risco de nos perdermos na defesa de uma espacialidade genérica tão obtusa quanto o privilégio de quem não precisa reivindicá-las. Forças de recusa quando o “sem nome” extrapola a ausência de título exigindo que a palavra se abra para uma semântica do que ainda não pode ser dito ou deve ser mantido no nível do segredo.

O que dizer das forças de descaptura, fenômeno de vidência, como se o corpo, no instante em que pode habitar o espaço do indizível, pudesse ao mesmo tempo repelir o que dele é intolerável, e visse nessa mesma brecha a possibilidade de uma outra coisa. O possível e o indizível não existem de antemão, são criados pela relação e pelo acontecimento. É uma questão de vida. A relação, seja ela uma cratera ou buraco, é o que cria as possibilidades de novas interações com o tempo, o corpo, o meio, o trabalho… Qual força invisível não pode ser captada senão pela astúcia consciente do descompromisso formal, desse inconformismo que nos faz pactuar certas angústias? Ao cruzar gesto, pintura e desenho para sugerir seus usos do espaço, Ana Cláudia Almeida tensiona os limites da pintura e, generosamente, nos oferece uma outra suavidade.

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